Um renascimento sensível e certeiro: “Boas Novas” apresenta Zeca Veloso como artista de voz própria
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| Foto: Zeca Veloso / Divulgação |
Com “Boas Novas”, Zeca Veloso entrega mais do que um disco — ele apresenta uma identidade artística amadurecida, plena de subjetividade, desejo de pertencimento e liberdade criativa. O álbum de estreia — com dez faixas autorais — reflete uma busca interior profunda e uma honestidade rara para um músico em início de trajetória solo.
Sete das faixas são de composição própria, e as restantes trazem colaborações com pessoas próximas, como os irmãos Tom Veloso, Moreno Veloso, e participações especialíssimas de convidados como Dora Morelenbaum e Xande de Pilares — o que dá ao álbum tanto raízes quanto contemporaneidade. Essa convivência entre herança familiar e assinatura individual faz com que “Boas Novas” soe como um disco de tradição repensada, onde o legado familiar é reconhecido, mas não serve de muleta — serve de ponto de partida.
Zeca descreve o processo de criação do álbum como profundamente espiritual — não apenas como uma escolha estética, mas como um gesto existencial, de coração e alma. “Boas Novas” atravessa esse lugar de intimidade, vulnerabilidade e fé, imprimindo ao disco uma aura sensível, introspectiva, mas não melancólica — ao contrário: esperançosa. As canções surgem como relatos pessoais que reverberam com quem ouve, conduzidas por uma voz que parece despida de artifícios, honesta, contida e intensa. Isso dá ao álbum uma coesão emocional rara em estreias — como se Zeca estivesse confiando ao ouvinte sua própria bagagem interior.
Embora o álbum percorra caminhos musicais variados — do samba com influências contemporâneas à MPB com tom mais meditativo — há um fio condutor muito bem definido: o equilíbrio entre tradição e modernidade, o familiar e o novo, o íntimo e o universal. Esse mosaico de influências e colaborações compõe um disco versátil, que conversa com diferentes públicos sem perder unidade. As parcerias — como a de Xande de Pilares e Dora Morelenbaum — ajudam a expandir o universo sonoro, trazendo texturas e atmosferas diversas, mas sempre alinhadas à sensibilidade de Zeca.
Agora, vamos às faixas:
1
Salvador (com Caetano Veloso, Moreno Veloso e Tom Veloso)
A abertura do álbum — e que abertura! “Salvador” traz a presença direta da família, e simboliza o elo de Zeca com sua herança musical. A escolha de reunir vozes tão distintas em uma só faixa dá grande peso simbólico e emocional ao início: é como se Zeca afirmasse seu lugar, não como sombra, mas como continuidade de uma tradição viva.
2
Boas Novas
Faixa-título e coração do álbum. Aqui, Zeca parece compor com a urgência de quem tem uma mensagem a transmitir: esperança, renascimento, fé — elementos que dialogam com a perspectiva espiritual que permeia todo o disco. A canção convida o ouvinte a abrir o coração para algo novo e sincero.
Um momento mais íntimo e reflexivo. A faixa convida ao recolhimento e à vulnerabilidade: soa como um suspiro ou uma dúvida colocada em melodia. Excelente na construção de sensibilidade e emoção contida — ideal para quem gosta de ouvir com calma e atenção.
A faixa tem leveza e fluidez. Composta por Zeca, traz uma sonoridade que mistura introspecção com delicadeza — como um traço suave de poesia em forma de música. Funciona quase como um interlúdio de sensibilidade dentro do álbum.
5
Única faixa (ou uma das poucas) com coautores fora da família — mostra a abertura de Zeca a outras colaborações criativas. A canção demonstra versatilidade e disposição para dialogar com diferentes olhares, mantendo sua identidade autoral.
Transita entre melancolia e movimento; remete à sensação de cidade, passagem, fluxo. Talvez represente a dualidade entre raízes e deslocamento, passado e futuro — encaixando bem no contexto de quem está surgindo solo. Essa faixa deve agradar quem gosta de MPB contemporânea com nuances urbanas.
7
Bela demonstração de delicadeza. A faixa, com arranjos de madeiras e flautas, traz simplicidade instrumental e destaque vocal — perfeita para momentos de introspecção. Reforça a alma íntima do disco, sem exageros, mas com profundidade.
8
A Carta (com Dora Morelenbaum)
Um dos momentos mais emotivos do álbum: a participação de Dora acrescenta textura, sensibilidade e profundidade. A faixa soa como um diálogo — ou uma carta de alma aberta — entre intimidade, memória e afeto. É dessas canções que convidam a uma escuta atenta e pessoal.
9
O Sal Desse Chão (com Xande de Pilares)
Mistura tradição e contemporaneidade: a colaboração com Xande de Pilares traz elementos do samba ou de ritmos mais populares, trazendo calor, chão e ligação com o Brasil real. Essa faixa traz diversidade ao álbum, mostrando a pluralidade de influências e a versatilidade de Zeca.
Faixa de encerramento com simbolismo forte: reverencia sua história, revisitando uma canção já presente em versões anteriores, mas agora sob sua voz em seu primeiro álbum solo. Funciona como ponte entre passado e presente — uma espécie de fechamento consciente, que reafirma o papel de Zeca como continuador e renovador de tradições.
“Boas Novas” funciona não só como apresentação de um artista novo, mas como afirmação de uma identidade artística autoral. Zeca mostra que, apesar da herança — visível e mencionada por ele mesmo —, ele tem voz própria, visão própria, e disposição para reconstruir caminhos e expectativas. É um disco que convida a escuta atenta, a sensibilidade e a abertura de coração. E, dada a maturidade e a honestidade entregues, ele deixa a sensação de que o que vimos até agora é só o começo — e que as “boas novas” de Zeca Veloso mal começaram a chegar.

