Tori é uma cantora e compositora brasileira nascida em Aracaju, Sergipe. Após quase uma década de carreira, apresenta seu segundo disco solo, Areia e Voz, lançado dois anos depois de seu trabalho anterior, Descese. Em suas canções, faz um elogio ao ar para construir uma poética sensível sobre memória, deslocamento e presença. Sua música transita entre o íntimo e o ancestral, com uma sonoridade contemporânea pautada no violão e na voz sussurrada, acompanhada de texturas orgânicas que dialogam com a natureza. 

Nesta conversa exclusiva para o programa TransAtlântica, Tori fala sobre a génese do disco, as referências regionais e universais que o atravessam, a identidade visual que expressa o movimento do vento e da areia, e o chamado poético que une as músicas e os músicos envolvidos. Um retrato sincero e profundo da artista em trânsito entre suas raízes e o mundo.

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Confira agora a entrevista da TransAtlântica na Rádio Graviola, conduzida por Octávio Carmo.


Octávio Carmo
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TransAtlântica na Rádio Graviola
Obrigado por estares aqui com a gente na TransAtlântica. É um grande prazer. Ouvi Areia e Voz, o teu segundo disco, que me impressionou muito. É um trabalho que tenho escutado bastante, e que, curiosamente, me surgiu quase como um elogio ao ar: algo que se sente, mas não se vê, e que, no entanto, move a nossa vida. Isso faz sentido? E podes explicar o título, Areia e Voz?
Tori
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Cantora e Compositora
Faz muito sentido. Quando comecei a organizar as músicas que gravaria, percebi que havia muito vento nelas. Era como se o ar estivesse sempre presente. Isso me chamou a atenção porque o disco anterior, Descese, era totalmente terra – falava de raízes e matéria. Então, percebi que agora eu estava no ar. Meu primeiro EP, gravado aos 16 anos, chamava - se Acoia (que é uma pérola) e era completamente água – a primeira faixa é Deságua. Isso foi há dez anos. Curiosamente, as canções que ficaram de fora de Areia e Voz falavam do fogo. Acho que meu inconsciente vai transitando pelos elementos. O próximo disco, talvez, será fogo, uma coisa meio ‘avatar’.
Octávio Carmo
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TransAtlântica na Rádio Graviola
Essa presença do vento também traz a ideia de movimento. É natural: o vento move tudo. Sentes que esse deslocamento está também ligado à tua vida como artista — sair de onde nasceste, encontrar novas referências, compor em trânsito?
Tori
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Cantora e Compositora
Com certeza. Sou de Aracaju e estou no Rio há três anos. Muitas músicas nasceram em deslocamento: Aracaju, Salvador, Rio, Belo Horizonte. Inclusive, a base do disco - Toro, Júlia Guedes, Domenico e eu - somos todos de lugares diferentes. Essa mistura de cidades e caminhos atravessa o álbum. O título Areia e Voz não é óbvio. Quando cantei pela primeira vez, imaginei areia voando. Com o tempo, percebi que falava de um sentimento mais amplo. A música nasceu de uma melodia que Pedro Junqueira me enviou, e a letra surgiu num fluxo de consciência. Depois percebi que o que dizia ali resumia o disco inteiro. A voz, afinal, só existe num vazio que não é totalmente vazio, no vácuo ela não existe. Assim como a areia e o vento, a voz constrói paisagens. A capa, feita nas Dunas de Cabo Frio - chamadas Duna Mãe - é também sobre isso: uma paisagem formada pelo vento. Tudo foi guiado, no fundo, por paisagens inconscientes. .
Octávio Carmo
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TransAtlântica na Rádio Graviola
A identidade visual do disco dialoga fortemente com as canções. Há movimento, leveza, respiração. Procuraste também transmitir isso na imagem?
Tori
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Cantora e Compositora
Sim. Foi um processo muito intuitivo com Clara e Elisa, que fizeram as fotos e a capa. Conversamos muito; tudo foi surgindo organicamente. A foto da capa não foi planejada, fomos deixando acontecer. A luz mudou, o vento soprou, e eu comecei a brincar com a areia. Gosto dessa foto porque tudo nela está em movimento. Em outra, eu estava parada e a areia se movia. Aqui, nós duas, eu e a areia, estamos em movimento. Essa imagem tem a mesma energia do disco. E há algo simbólico: sempre fui mais contida no palco. Houve um tempo em que uma meta de Ano Novo era simplesmente ‘abrir os braços’ durante o show. Essa capa traz esse gesto, o desprendimento.
Octávio Carmo
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Em Areia e Voz, a canção - título, tens a participação de Nina Maia. Há nessa faixa algo de antigo, quase mineral – uma reverência, um cuidado para que a voz não se imponha à canção. Foi intencional?
Tori
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Cantora e Compositora
Gosto muito dessa leitura. A música tem um registro grave, mais sussurrado. Há tempos imaginei que a Nina deveria cantar comigo: o canto dela é cheio de ar, e isso faria sentido com a atmosfera da canção. As camadas foram surgindo naturalmente. No arranjo, o violoncelo da Chica (Francisca Barreto) nasceu de ideias criadas a partir do baixo; e quando o Domenico entrou, tudo ganhou outro corpo. A participação da Nina foi um chamado da própria música. Ela aparece com delicadeza, quase como uma lembrança, o ar dentro da areia.
Octávio Carmo
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TransAtlântica na Rádio Graviola
Falaste agora na Chica, a Francisca Barreto. Ela está contigo em Discreta Paz, que é uma das músicas que mais me emocionaram. Sendo tão jovem, escreveste versos como “quero transparecer o tempo de outros tempos que ainda em mim teima em viver”. Há uma maturidade ali. Como foi deixar que essas memórias entrassem no disco?
Tori
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Cantora e Compositora
Essa música tem muito disso. Tenho 25 anos, e às vezes sinto como se já tivesse vivido outras vidas. Discreta Paz nasceu enquanto caminhava… muitas músicas minhas vêm assim, no passo, antes do violão. Ela é quase uma oração. A música mais ‘vazia’ do disco, onde cada silêncio importa. E escrever, para mim, é sempre um modo de acessar essas memórias, não só minhas, mas dos encontros e das vidas que me atravessam. Tenho fé de que, enquanto eu estiver viva e atenta ao mundo, a música seguirá vindo.
Octávio Carmo
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TransAtlântica na Rádio Graviola
Há músicas especialmente íntimas, como Júlia e Bebéu e Cartografias. São as que mais falam de ti?
Tori
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Cantora e Compositora
Sim. Discreta Paz também é íntima, mas Júlia e Bebéu é profundamente pessoal, é sobre os meus avós. Consegui imprimir ali o meu amor por eles. Eu tinha um ano quando meu avô morreu, mas lembro que ele dizia que eu era ‘velha’. Quando a vida aperta, lembro disso: ‘meu avô disse que eu era velha’ e busco essa sabedoria antiga. Cartografias é sobre Aracaju. Só depois de morar no Rio percebi o que significa ser de lá. Vi como, no Sudeste, muitos chamam tudo de ‘Bahia’, e Sergipe desaparece nesse imaginário. Quis afirmar essa origem, dar-lhe contorno. É um mapa afetivo.
Octávio Carmo
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Ainda há quem te veja como artista ‘regional’?
Tori
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Cantora e Compositora
No disco novo, não senti isso. Mas no anterior, sim. O sotaque nordestino ainda causa esse tipo de marcação. Já aconteceu de elogiarem o ‘meu sotaque’ numa música em que o outro cantor era carioca! É curioso, alguns sotaques são tidos como ‘neutros’, outros não. Em Cartografias há sanfona, mas sem seguir nenhum ritmo tradicional. Já Trastejo traz, de forma mais direta, minhas referências da psicodelia nordestina, especialmente de Pernambuco, que eu amo. E acho que está tudo bem: a música é esse trânsito.
Octávio Carmo
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TransAtlântica na Rádio Graviola
Para quem vem de fora, como eu, o mais bonito é perceber que ‘música brasileira é música brasileira’. Com muitas referências, sim, mas com uma identidade que fala com o presente, mantendo a memória. É o que também sinto no teu trabalho com Domenico Lancellotti.
Tori
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Cantora e Compositora
Sim. A minha forma de ser contemporânea está no meu modo de compor e tocar. Não busco a atualidade como uma estratégia — ela está na minha experiência de vida. Claro que ouço muita coisa: Lô Borges (Via Láctea), Fiona Apple, Alceu Valença, sons dos anos 70 aos 2000. Tudo isso está no disco, mas de forma orgânica. Gosto de pensar o som pela atmosfera e pelo sentimento, não pela reprodução de estilos. Como produtora, costumo dizer: ‘siga o coração’. E é assim que conduzimos o disco.
Octávio Carmo
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TransAtlântica na Rádio Graviola
Queria falar de Repouso, O Som de Quem Dorme Bem e Ilha Úmida, o single de lançamento. São faixas que tratam de calma, respiração, amor, espera. O que as une na tua visão?
Tori
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Cantora e Compositora
Cada uma traz um tipo de ar diferente. Ilha Úmida é a única cuja letra não é minha — é de João Bernardo. Nela, interpretei que a paixão pertence à água e o amor ao ar, como uma travessia entre os dois elementos. Repouso é uma das primeiras músicas de amor romântico que fiz. Fala da ave que se apoia na mão e depois voa — o amor como movimento. O Som de Quem Dorme Bem é sobre a respiração, a paz entre inspirar e expirar. É a canção que mais se aproxima da terra, por unir humanos e outros seres no mesmo gesto do sono: ‘poros, olhos, antenas, patas e mãos’. Escolhi Ilha Úmida como single porque ela tem esse carisma: é romântica, acessível, uma boa porta de entrada. Há outras faixas mais representativas do disco, mas ela dialoga com muita gente.
Octávio Carmo
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TransAtlântica na Rádio Graviola
Quando escrevi sobre o disco, mencionei o tema do ruído e achei que houvesse um diálogo com o ruído urbano. Depois percebi que não era bem isso. Fala-me desses ruídos: há textura, matéria, organicidade.
Tori
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Cantora e Compositora
Acho linda a tua leitura, porque o disco está aberto a interpretações. A minha intenção é só uma entre muitas. Em faixas como Harmonia do Mundo e O Som de Quem Dorme Bem, há momentos caóticos, cheios de energia. A banda enlouquece, mas a voz permanece calma. Eu queria explorar texturas de areia – sons granulados, ásperos – mais do que ruído urbano. No início, pensei em incorporar isso a todas as músicas, de forma até mais ruidosa. Depois, percebi que bastava deixar os ruídos orgânicos: pratos arranhados, texturas de sopro. Minha voz é doce, e quis contrastá-la com essa aspereza, o encontro entre a areia e a voz.
Octávio Carmo
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TransAtlântica na Rádio Graviola
Desejo que esse disco encontre muitos ouvidos e muitos palcos. É um trabalho que pede presença.
Tori
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Cantora e Compositora
Obrigada pelo convite e pela escuta sensível.
Octávio Carmo
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TransAtlântica na Rádio Graviola
Prazer mútuo. Obrigado, Tori, e até breve.

Ouça o álbum "Areia e Voz" de Tori no Spotify